Triste tigre
Neige Sinno
Amarcord, 2025
É um momento fora do tempo, destacado do curso da história, tão carregado de absurdo e de significado que escapa a qualquer tentativa de entendimento por meio de uma narrativa. Acho que era ao mesmo tempo a primeira vez que me tocavam naquele lugar, a primeira vez que mentiam para mim - e eu sabia, sem sombra de dúvida, que estavam mentindo para mim -, a primeira vez que me via num território obscuro, sem saber para que lado ir, com todos os sentidos alerta. E minha vida, ameaçada numa intensidade máxima, foi revelada para mim, ainda que tão frágil, em sua luminosa singularidade.
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Dos sete aos catorze anos, Neige Sinno foi estuprada pelo padrasto. Aos dezenove, depois de deixar a casa na qual vivia em condições precárias com a família, ela quebra o pacto de silêncio e conta à mãe sobre os abusos. Ambas denunciam o padrasto pelos crimes cometidos, iniciando um processo judicial que o condena a nove anos de prisão.
A violência que a devastou em um período tão constitutivo de sua vida é elaborada nas páginas de Triste tigre, que traduzem décadas de reflexão profunda até chegar à compreensão fugidia de algo inominável, navegando entre memórias vívidas e turvas, documentos e conversas.
Em seu percurso, Neige apresenta também releituras de Vladimir Nabokov, Virginia Woolf, Toni Morrison, Virginie Despentes e outros autores, e se questiona se é possível, ou mesmo desejável, traçar um retrato da mente do estuprador sem se prender ao ponto de vista de quem sofre o abuso.
A autora traça o mapa de um território compartilhado por vítimas e algozes e explicita as fronteiras da perversidade. Para Neige, embora vítimas e algozes entrem em contato com a escuridão e a maldade, quem sofre a violência não precisa ser condenado a viver eternamente nesse lugar.
A vítima é, sim, capaz de irromper a fronteira da perversidade, ainda que fique marcada por ela para sempre. E, para tal, é preciso não desistir, não esquecer, não perdoar. É preciso nomear o inominável.