O uso da foto

Annie Ernaux e Marc Marie

Fósforo, 2025

Toda vez era uma surpresa. Não reconhecíamos de primeira o cômodo da casa onde a foto tinha sido tirada, nem as roupas. Não era mais a cena que tínhamos visto, que tínhamos querido salvar e que logo se perdeu, e sim um quadro estranho, de cores muitas vezes suntuosas, com formas enigmáticas. Impressão de que o ato de amor da noite ou da manhã — já tínhamos dificuldade em lembrar a data — era ao mesmo tempo materializado e transfigurado, que agora ele existia em outro lugar, num espaço misterioso.

Em 2003, uma semana antes de começar um tratamento de câncer de mama, Annie Ernaux inicia um relacionamento com o fotógrafo e jornalista Marc Marie, então recém-divorciado. Numa atmosfera que mescla o medo da morte com um forte impulso de vida, os dois passam a fotografar suas roupas que foram abandonadas pelos cômodos da casa antes do sexo. Dessas belas imagens — publicadas coloridas nesta edição —, cada um se propõe a escrever um texto sobre memória, desejo, doença, o poder da fotografia, a Guerra do Iraque que acabava de eclodir, a Bélgica da infância de Marie, e várias outras reflexões que se alternam com surpreendente sinergia entre os autores.

Debruçando-se sobre as catorze fotografias feitas no decorrer daquele ano, Ernaux afirma que registrar tais vestígios de amor era como ter uma prova de que ainda estava viva. E, diante da possibilidade da morte, ela passa a buscar uma forma literária que abarque toda a sua biografia, a qual culminará em Os anos, sua obra magna escrita imediatamente depois deste O uso da foto.

Diferente das descrições fotográficas dos outros livros da autora, feitas sobre retratos, aqui Annie e Marc partem da ausência. Porque, ainda que a inexistência de corpos remeta ao fim ocasionado pelo câncer, ela também potencializa o erotismo, sobretudo o daquele corpo que se transforma.

Nessa espécie de diário do abandono ao prazer, cheio de intenção artística e reflexões originais sobre a fotografia, conhecemos uma fase decisiva da vida da vencedora do prêmio Nobel de literatura de 2022 e novas facetas do modo com que ela constrói seu projeto de escrita. “Não espero a vida me trazer temas, e sim organizações desconhecidas de escrita”, afirma Ernaux. Assim, em meio a meias-calças, sapatos, roupas íntimas e lençóis embolados, nos fascinamos com uma literatura capaz de apreender com agudez momentos tão fugidios.

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